FOLHA SP: Bilheterias mostram força de cinemas nacionais na pandemia_2021

 

Dados indicam que dependência de Hollywood diminuiu margem para lidar com crise do mercado

 

Pandemia teve efeitos catastróficos para o cinema, mas países com produção mais forte e menos dependentes de Hollywood resistiram melhor à crise, como a China, que emplacou o maior sucesso do ano. No Brasil, comédia de Paulo Gustavo deu respiro ao circuito, mas desmonte das políticas de estímulo lança dúvidas sobre recuperação do setor.

Na primeira fase da pandemia, entre março e junho de 2020, apenas 4% das cerca de 200 mil salas de cinema existentes no mundo permaneceram abertas. A partir do segundo semestre, quando se acreditou que a transmissão do coronavírus começava a ser minimamente controlada, teve início o processo de retomada do circuito.

De acordo com a Comscore, empresa internacional de análise de mídia, já em agosto 65% dos cinemas do mundo tinham voltado a operar. Muitos fechariam novamente no fim do ano passado, em decorrência da segunda onda da Covid-19.

Desse vaivém emergiu uma constatação interessante: nos países em que o cinema produzido localmente é forte e a dependência em relação a Hollywood é menor, o tombo foi atenuado.

O catastrófico 2020 deixou claro que, quanto mais dominados por filmes produzidos pelos estúdios hollywoodianos, menos possibilidade de lidar com a crise os mercados tiveram.

A queda das bilheterias no mundo variou de 57% a 80%, sendo o maior índice registrado nos EUA. Conforme os dados relativos a 2020 vão sendo consolidados, o papel das cinematografias locais na sobrevivência do negócio materializa-se em indicadores.

Como constatou o Filme B, que acompanha o mercado audiovisual, o tamanho do tombo dos cinemas foi determinado pelo tempo em que as salas permaneceram fechadas, muito ligado ao controle da pandemia nos diferentes países, e a potência dos filmes nacionais.

Em seu relatório anual, a Unic (União Internacional dos Cinemas), que tem sede em Bruxelas e representa 43 mil salas de 38 territórios europeus, publicou uma lista de filmes que lideraram as bilheterias nos países de origem e funcionaram como tábua de salvação para o circuito.

Foi o caso de “Sou Francês e Preto”, na França; de “De Piraten van Hiernaast” (o pirata da porta ao lado), na Holanda; e de “Padre no Hay mas que Uno 2 – La Llegada de la Suegra” (pai só tem um 2 – a chegada da sogra), na Espanha.

Os exemplos mais categóricos do papel desempenhado pelos filmes locais vêm dos asiáticos. Apesar de o circuito ter sido devastado por seis meses de salas fechadas em várias províncias, a China figurou, em 2020, como o maior mercado de cinema —até 2019 era o terceiro, atrás de Estados Unidos e Europa.

 

O país emplacou 4 filmes entre os 10 mais vistos no mundo, furando uma lista que costuma ter apenas títulos hollywoodianos. A produção que mais rendeu globalmente foi o épico de guerra “The Eight Hundred” (os oitocentos), dirigido por Guan Hu.

Orçada em US$ 80 milhões (R$ 428 milhões), essa superprodução chamou a atenção da mídia ocidental por ter arrecadado US$ 461 milhões (R$ 2,47 bilhões) no pior ano da história dos cinemas. Jornalistas estrangeiros na China escreveram que o filme se beneficiou da ausência hollywoodiana e do impulso nacionalista gerado pela pandemia.

O recorde não surgiu do nada. O governo chinês impõe limites à presença do cinema americano e investe de forma consistente na indústria audiovisual. Em 2019, mesmo com o sucesso de “Vingadores: Ultimato”, os filmes locais responderam por 64% dos ingressos vendidos no país.

No Japão e na Coreia do Sul, a participação de mercado dos filmes nacionais também vinha ultrapassando os 50% nos últimos anos, feito raro para a grande maioria dos países.

Na Coreia do Sul, “Invasão Zumbi 2: Península” não só se tornou o maior sucesso pós-Covid como acabou socorrendo os circuitos do Ocidente. Na França, os donos de cinema chegaram a fazer um apelo para que o distribuidor do título asiático não adiasse sua estreia. Em 2019, os filmes sul-coreanos obtiveram 51% do market share local.

No Japão, depois de meses de cinemas vazios, o retorno do público se deu quando estreou “Demon Slayer: Mugen Train”, anime baseado em um mangá de grande sucesso. Os distribuidores do filme, na contramão dos estúdios norte-americanos, resolveram aproveitar a brecha e antecipar o lançamento para 16 de outubro. O filme teve 3,4 milhões de espectadores no fim de semana de estreia, o dobro do recorde anterior de uma produção japonesa.

Não se pode desconsiderar que o título foi lançado no primeiro final de semana em que as salas puderam trabalhar sem limitação de lugares e que, naquele momento, a pandemia parecia controlada no país. O sucesso foi festejado pelo governo.

Também na França o bom desempenho dos filmes locais foi celebrado pelo CNC (Centro Nacional da Cinematografia): os longas franceses venderam, em 2020, 29,2 milhões de ingressos ante 26,6 milhões vendidos pelos filmes dos EUA. Em 2019, a participação de mercado do filme francês tinha sido de 34,8%.

Logo após a reabertura das salas, no verão europeu, a associação dos distribuidores franceses criou a campanha #OnIraTousAuCinéma (nós todos iremos ao cinema), que incluía atores e diretores falando sobre sua relação com a sala escura. Emissoras de TV deram espaço, gratuitamente, para a campanha. A CNC, por sua vez, criou incentivos para os distribuidores que se dispusessem a lançar longas-metragens mesmo sabendo que o público seria limitado.

Quase todos os países europeus tiveram campanhas de sensibilização para que os espectadores tomassem conhecimento dos protocolos de segurança das salas e procurassem valorizar as produções que, apesar do momento difícil, estavam entrando em cartaz. Em alguns deles, como Reino Unido e Noruega, houve campanhas visando, especialmente, os filmes nacionais.

Diferentes pesquisas mostraram que, embora uma parte importante do público não volte às salas por considerar o cinema um lugar inseguro, há outra parte que se sente mais desmotivada do que amedrontada. Segundo esse grupo, a programação não tem justificado uma saída de casa.

Em outubro, a Unic afirmou que quando os estúdios resolvessem lançar seus filmes, talvez já fosse tarde demais para os cinemas europeus, que estariam quebrados.

A mensagem se devia ao fato de que, desde março de 2020, os estúdios de Hollywood têm segurado seus títulos à espera do momento em que o público possa voltar às salas ou optado pelo lançamento no streaming, seja ele exclusivo ou simultâneo nos cinemas e nas plataformas.

O apelo se justifica pelo fato de que, apesar de milhares de títulos serem anualmente lançados, são as superproduções, acompanhadas da venda de pipoca na bombonière, que tornam boa parte das salas rentáveis.

Para se ter uma ideia, oito únicos filmes, todos de Hollywood, responderam por quase 30% dos US$ 42,5 bilhões de dólares arrecadados mundialmente pelos cinemas em 2019.

No Brasil foram lançados, em 2019, 444 longas-metragens. Seis blockbusters produzidos por três estúdios (Disney, Warner e Sony), no entanto, concentraram 40% dos R$ 2,8 bilhões arrecadados pelo circuito. O filme mais visto de 2019, “Vingadores: Ultimato”, vendeu, sozinho, 11% de todos os ingressos do país. Os 167 filmes brasileiros que estrearam em 2019 responderam por 13,6% da bilheteria.

De acordo com a Ancine (Agência Nacional do Cinema), o público dos cinemas no Brasil, no ano passado, foi de 38,7 milhões, o que significa uma redução de 77% em relação à média dos três anos anteriores.

Um levantamento feito pelo Filme Box Office dá conta de que 85 filmes brasileiros estrearam em 2020, vendendo ao todo 9,3 milhões de ingressos. Desse total, 9,1 couberam a “Minha Mãe É uma Peça 3”, que foi lançado na última semana de 2019 e fez boa parte do seu público entre janeiro e fevereiro.

De acordo com a Comscore, o Brasil foi, na América Latina, o segundo país com menor queda na arrecadação, atrás apenas da Bolívia. Como nenhum outro filme brasileiro com potencial de público chegou ao circuito depois do início da pandemia, o resultado se deve, obviamente, ao desempenho da comédia de Paulo Gustavo.

Apesar de, há anos, ter o blockbuster estrangeiro como prioridade, o circuito comercial vem sentindo o baque. Procurado pela Folha, Ricardo Difini Leite, presidente da Feneec (Federação Nacional das Empresas Exibidoras Cinematográficas), fez questão de defender a importância do cinema brasileiro.

“Seria muito importante para o nosso setor que tivéssemos um filme nacional, com grande apelo popular, no momento da retomada das salas”, diz Leite. “Entendemos que a dependência do conteúdo de Hollywood não é saudável nem benéfica para o mercado de exibição.”

A partir da permanência das salas abertas, a tendência é que os distribuidores voltem a colocar filmes com maior potencial de público nos cinemas, inclusive aproveitando a brecha deixada pelos títulos hollywoodianos.

Já a existência de filmes brasileiros para ocupar o mercado nos próximos anos depende, basicamente, da retomada das políticas públicas voltadas ao setor, represadas desde 2018.

 

Por ANA PAULA SOUSA

Jornalista e doutora em sociologia da cultura pela Unicamp

FONTE: Portal Folha de São Paulo

 

 

 

 

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