Entrevista: Impactos do VOD no mercado audiovisual com Gilberto Toscano

Entrevista com o Gilberto Toscano, advogado do Cesnik, Quintino e Salinas Advogados, sobre as mudanças provocadas pela popularização do VOD no setor audiovisual e os impactos decorrentes de seu consumo.

1 – Como o surgimento do streaming e do VoD impactaram o mercado audiovisual e a relação entre os elos da cadeia: produtores, distribuidores e exibidores?

R: O surgimento da tecnologia do streaming tornou possível a transmissão de conteúdos em rede aberta ou “não dedicada” (Internet), não-linear ou por demanda do usuário (on demand), isso é, não vinculada a uma grade de programação pré-estabelecida por outra pessoa. Esse usuário, à medida que a infraestrutura do local onde ele está foi permitindo a transmissão em tempo real de conteúdos on demand e à medida que esse tipo de transmissão foi sendo replicada em redes fechadas ou “dedicadas” (fibra, cabo, etc.), passou a contar com um novo modo de consumo de conteúdos fonográficos e audiovisuais, o VOD.

Plataformas on demand em rede aberta ("exibidores") têm custo de implementação e de manutenção muito inferiores aos custos dos "exibidores" de conteúdos transmitidos por modalidades pré-existentes de consumo de conteúdo, a exemplo de emissoras de televisão aberta e de televisão por assinatura (serviço de acesso condicionado), o que propicia o aumento no número de plataformas ofertantes de conteúdos on demand e a oferta/negociação desses conteúdos a preços menores.

Produtores de conteúdo, por sua vez, têm no VOD uma possibilidade adicional de licenciamento e, portanto, de rentabilização do seu conteúdo por plataforma "exibidora" de VOD que adquirir tal conteúdo.

Já a figura do distribuidor de conteúdos para o mercado de VOD vem sofrendo mudanças, seja em razão da existência de plataformas de VOD que admitem negociar diretamente com produtores, seja em razão do crescimento da figura do "agregador", um agente autorizado e indicado por certas plataformas de VOD (geralmente as maiores) como aquele com quem se deve tratar, caso produtoras ou distribuidoras estejam interessadas em licenciar conteúdos.

O agente "distribuidor" segue presente, sobretudo daqueles com catálogos expressivos de conteúdos, mas vem sendo afetado no ambiente on demand. Exemplo disso é a possibilidade de uma mesma empresa ter funções de distribuição e de agregação de conteúdos.

 

2 – O que vem a ser o modelo de TV everywhere e qual sua função?

R: TV everywhere consiste no acesso à programação dos canais de TV por meio de aplicativos ou de sites, a partir de qualquer dispositivo, em qualquer lugar (“everywhere”) conectado à Internet. Há quem (corretamente) a defina como TV além do televisor.

Tal acesso também engloba serviços de catch-up, modelo em que o assinante de canais de TV por assinatura – ou o espectador em TV aberta – pode, por certo período, assistir a conteúdos originalmente transmitidos dentro da grade desses canais quando quiser, sem pagamento de valor adicional (ao valor da assinatura que já paga para assistir a tais canais) – ou gratuitamente, no caso de TV aberta.

Esse acesso é geralmente oferecido a assinantes de TV por assinatura, previamente autenticados, sem a cobrança de valor adicional ao valor da assinatura paga para assistir a tais canais, quando distribuídos pelas operadoras, mas também pode ser oferecido gratuitamente a espectadores de TV aberta.

Por fim, a comodidade da TV everywhere presta-se a dissuadir o público espectador dos respectivos canais de televisão a deixarem de assistir (ou de assistirem menos) a esses canais e, por que não, a conquistar novos espectadores (habituados a consumir conteúdos sem o uso de aparelhos de televisão). 

 

3 - O lançamento de plataformas de VoD (seja nas modalidades FVoD, TVoD ou SVoD) deverá ser uma tendência das grandes emissoras, a exemplo do Globo Play e do HBO Go?

Resposta: Sem dúvida que sim, a ponto de podermos dizer que, hoje, o lançamento de plataformas de VOD de propriedade de emissoras em rede aberta não é mera tendência, mas realidade em implementação.

 

4 – O que devemos esperar em termos de regulamentação do conteúdo audiovisual no VoD?

Resposta: Não sei, mas penso que a criação de um conjunto de normas eficiente para o mercado de VOD pressupõe: uma concertação entre o governo, o legislativo e os diversos agentes econômicos envolvidos nesse mercado; transparência e convite à participação da sociedade civil durante todo esse processo; e consciência de que a regulação a ser criada não pode comprometer a viabilidade econômica desse mercado para os diversos agentes econômicos que atuam nele. Minha maior preocupação é de que a discussão e a criação dessa regulação, por envolver diversos aspectos jurídicos e agências, mas um mesmo (novo) mercado, não sejam feitas de forma coerente caso os órgãos responsáveis não conversem entre si.

Veja do que estou falando:

- no caso de redes fechadas (cabo, fibra, DTH etc.), a ANATEL é a agência competente;

- no caso de rede aberta (Internet), ainda não temos uma agência competente, apenas sabemos que a plataforma de VOD é uma "aplicação";

- não temos uma agência competente para registro e regulação do funcionamento dessas plataformas e do ambiente de concorrência nesse mercado, apenas sabemos que a Ancine pretende ser essa agência, o que depende de lei. Além disso, que está entre as intenções dessa agência, criar algum tipo de obrigação que garanta presença mínima de conteúdos brasileiros, com destaque para os independentes, em catálogos oferecidos no território nacional;

- regras sobre a classificação indicativa desses conteúdos, por sua vez, são fixadas pelo Ministério da Justiça. Essas regras, no meu entendimento, atualmente não abrangem o FVOD, essa lacuna precisaria ser suprida;

- as questões da neutralidade de rede e do uso de dados pessoais também não estão efetivamente reguladas hoje no Brasil e, embora transcendam o ambiente on demand, afetam-no diretamente;

- discute-se, com base na Lei de Direitos Autorais, de 1998, se a transmissão on demand de obras musicais/fonogramas (isoladamente ou inseridos em obras audiovisuais) configura "execução pública", o que torna devido o pagamento por tal execução aos titulares dos direitos que fazem parte dessas obras musicais/fonogramas. Espera-se que o Superior Tribunal de Justiça decida um caso, atualmente sob análise dele, para determinar se se trata de execução pública;

- a tributação no segmento de VOD (célebre em razão da cobrança considerada excessiva de um valor fixo, a título de CONDECINE devida por conteúdo audiovisual licenciado para cada plataforma de VOD. Atualmente em fase de estudo para reformulação, possivelmente para que deixe de ter valor fixo e passe a ser atrelada a um percentual das receitas de cada plataforma) - transcende o âmbito da CONDECINE e deve ser considerada em conjunto com os demais tributos eventualmente incidentes. 

Sempre que um título for licenciado para cada plataforma de VOD (não importando se VOD for a primeira, segunda, terceira ou quarta janela de exibição), deverá pagar nova CONDECINE Título. A Ancine declarou não ser favorável a novo recolhimento apenas para o segmento de catch-up, que ela não considera como pertencente ao mercado de VOD, mas de TV por assinatura, essa é a única exceção.

São bastantes variáveis, não? Nosso desafio é considerar todas no momento de discutir e criar cada aspecto da regulação do setor on demand para que ele tenha regras concorrenciais claras e que não comprometam sua atratividade para os diversos agentes econômicos desse mercado, nem a dinâmica de outros mercados pré-existentes, notadamente o mercado de televisão por assinatura (que hoje também disponibiliza conteúdos na forma de catch-up, também acessíveis por meio do TV everywhere). Espero, sinceramente, que a sociedade civil e os agentes econômicos envolvidos tenham oportunidade de ser ouvidos pelo Governo ao longo desse processo de estudo e formulação de projetos de regulação do mercado de VOD.

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